Mestrado Europa

Ponto de encontro das disciplinas de mestrado do ISCSP sobre temas europeus da responsablidade de José Adelino Maltez, Andreia Soares e Raquel Patrício

14.12.07

O Tratado de Lisboa

O Tratado de Lisboa assinado ontem pelos chefes de Estado e de governo da União Europeia (UE), e que põe fim a um processo longo e conturbado de revisão dos Tratados actualmente em vigor, recupera o essencial do Tratado Constitucional rejeitado pelos franceses e holandeses em 2005. Se é verdade que o carácter constitucional foi posto de parte, tendo sido retirada toda a terminologia dita mais “federalista”, para assegurar aos Estados mais cépticos que não se está perante a criação de um super-Estado europeu, as principais reformas institucionais foram preservadas. O novo texto não revogará todos os Tratados em vigor, substituindo-os por um só, mas introduzirá alterações no “Tratado da União Europeia”, que conservará a actual denominação, e no “Tratado que institui a Comunidade Europeia”, que passa a ser designado “Tratado sobre o Funcionamento da União”.
Isto foi possível porque a UE é dotada de personalidade jurídica, acabando-se, desta forma, com a dualidade UE/Comunidade Europeia e clarificando o sistema da União para o cidadão. Contudo, o facto de continuarem a existir três Tratados (o “Tratado que institui a Euratom” continua a vigorar), em vez de um, não contribui nem para a simplificação dos Tratados nem para a aproximação do cidadão à UE, que continua a ver este texto como dificilmente compreensível e pouco que ver com o quotidiano da sua vida. O que nos remete para outra questão que é a do desinteresse dos cidadãos aliada à falta de informação e debate sobre a UE e a consequente incapacidade de acompanhar os avanços do processo de integração europeia. De facto, a maior parte dos cidadãos sabe que é um momento importante, o da assinatura do Tratado, mas não sabe porquê.
A complexidade do texto encontra ainda justificação nas reivindicações de certos Estados-membros e está patente na introdução de várias declarações, protocolos e cláusulas de isenção, derrogatórias do acordado para todos os Estados-membros. De facto, a negociação dos Tratados é sempre um exercício complexo de gestão de interesses e procura de compromissos entre os Estados-membros e de cedências, concessões ou derrogações a alguns Estados-membros, bem como do adiamento de certas questões mais polémicas. Quanto a este último ponto o Tratado não é excepção, já que o novo sistema de definição da maioria qualificada entrará em vigor apenas a partir de 1 de Novembro de 2014 e a redução da composição da Comissão para dois terços do número total de Estados-membros é adiada para o dia 1 de Novembro de 2014.
Se a concessão de derrogações não é surpresa, a multiplicação de cláusulas de isenção que dão direito a certos Estados de se excluírem de certas políticas comuns coloca a questão de saber como gerir a “diferenciação” entre os Estados-membros numa UE a 30 sem pôr em causa o projecto de integração política. Ora o Tratado de Lisboa cria mais oportunidades para uma integração diferenciada e para uma Europa a várias velocidades, pois, para além das cooperações reforçadas, introduz a cooperação estruturada permanente no âmbito da defesa e a cláusula de saída para Estados-membros que não pretendem ou não estão em condições de assumir uma integração mais forte – isto só para mencionar dois exemplos.
Muito se tem dito sobre os avanços ou as mais-valias deste Tratado, e que este Tratado vai fazer a UE sair do impasse institucional, mas pouco sobre o problema da aplicação efectiva das suas inovações, nomeadamente sobre o impacto da criação do cargo de Presidente do Conselho Europeu e a sua articulação com o Presidente da Comissão Europeia e o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e respectivas repercussões para a eficácia da liderança europeia; o novo papel dos parlamentos nacionais; a cooperação reforçada em matéria de política externa e de defesa; a eleição do Presidente da Comissão pelo PE, etc. Este Tratado, à semelhança dos anteriores, não é perfeito, traduz o tal “compromisso possível” entre todos, e novas revisões seguir-se-ão. Abre-se agora a fase da ratificação para a respectiva entrada em vigor. A escolha deste processo é da competência dos diferentes Estados-membros, em conformidade com as respectivas normas constitucionais, podendo ser através de aprovação parlamentar e/ou por referendo. Até ao momento, e por imperativos de ordem constitucional, a Irlanda é o único Estado-membro que realizará referendo ao Tratado.


Andreia Mendes Soares
ISCSP, 14 de Dezembro de 2007

A Cimeira UE-África

As relações entre a União Europeia e África são já antigas. Por razões históricas e de proximidade geográfica, os países africanos da bacia do Mediterrâneo e os países africanos que fazem parte dos países ACP mereceram desde cedo uma atenção especial por parte da UE. Há sete anos, no ano 2000, também sob presidência portuguesa, realizou-se no Cairo a primeira Cimeira UE-África, dando início a um novo diálogo com África, com vista a criar uma parceria estratégica com todo o continente. O objectivo era também o de elevar as relações entre a UE e a África ao mesmo nível das existentes com a América Latina e a Ásia.
Tendo em conta que o contexto internacional mudou consideravelmente desde o ano 2000, com o agudizar de questões como a insegurança e a instabilidade política, a violação dos direitos humanos, as alterações climáticas e a migração, a pobreza e as pandemias, com a criação, em 2002, da União Africana, que substituiu a Organização para a Unidade Africana, e que agora é o principal interlocutor do lado africano – dela fazem parte todos os Estados africanos à excepção de Marrocos –, bem como o próprio alargamento da UE, é claramente necessário reafirmar e reforçar a parceria com África. Mas se o mundo mudou a África subsariana continua a ser a região mais pobre do mundo e muitos países africanos continuam atrasados em relação à prossecução dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). Meio século de ajuda ao desenvolvimento – a UE é o maior doador mundial de África – não teve pois a devida eficácia, em grande parte devido à falta de coerência entre a política de desenvolvimento e outras políticas da UE.
Impõe-se, desta forma, por parte da UE, uma nova combinação de políticas, uma abordagem mais abrangente do que no passado, que vá para além da tradicional ajuda ao desenvolvimento, apostando noutros domínios políticos que podem impulsionar o desenvolvimento africano e promover a estabilidade necessária. A estratégia de relacionamento com África tem de assentar, de facto, numa dupla abordagem. África é um continente com realidades geopolíticas, económicas, sociais e ambientais muito diferentes pelo que se impõe que a UE tenha em conta essas desigualdades. Por outro lado, a UE deve desenvolver mecanismos de forma coerente para lidar com África como uma só realidade. Isto porque a UE tem relações com África no âmbito da Parceria Euro-mediterrânica (com os países do norte de África), da Política Europeia de Vizinhança, dos Acordos de Cotonou (com os 48 países da África subsariana) e do Acordo de Comércio, Desenvolvimento e Cooperação com a África do Sul.
A segunda Cimeira UE-África, a realizar em Lisboa nos dias 8 e 9 de Dezembro insere-se, pois, na estratégia da UE de criação de “parcerias estratégicas globais” para fazer face aos desafios da globalização, proporcionando os instrumentos necessários para um trabalho conjunto sobre as grandes questões globais. É a resposta da UE para ajudar África na via de um desenvolvimento sustentável e atingir os ODM até 2015. Contudo, a tarefa não será fácil. O Relatório de Desenvolvimento Humano 2007-2008 do PNUD, publicado há dias, alerta que o aquecimento global poderá fazer retroceder o desenvolvimento e colocar em sério risco a realização dos ODM. África, devido ao seu subdesenvolvimento e à sua pobreza, é o continente que mais sofrerá com as alterações climáticas ainda que seja o que menos contribui para o aquecimento global. Daí que o Arcebispo Emérito da Cidade do Cabo Desmond Tutu, no citado Relatório, se refira ao “Apartheid da adaptação” para explicar a divisão do mundo entre os países que estão a desenvolver a capacidade de adaptação às alterações climáticas e aqueles que, por terem menos recursos, não estão.
Ainda quanto à estratégia de relacionamento com África é essencial que a promoção dos valores da democracia e dos direitos humanos seja a base fundamental do diálogo e da parceria UE-África, tal como o é nas relações que a União tem com países terceiros. Neste sentido, questões como a crise humanitária no Darfur e as graves violações dos direitos humanos no Zimbabué não deveriam passar à margem da cimeira. Que esta cimeira seja mais uma oportunidade para mobilizar a sociedade civil e alertar a opinião pública mundial para estas questões tão caras à humanidade para que, apesar de ocorrerem geograficamente longe, ninguém diga “que não sabia”.


Andreia Mendes Soares
ISCSP, 7 de Dezembro de 2007