As Relações em Eixo Franco-Alemãs
AS RELAÇÕES EM EIXO FRANCO-ALEMÃS
Raquel Patrício
INTRODUÇÃO
De 1870 aos nossos dias, as relações franco-alemãs, submetidas aos condicionalismos regionais, evoluíram forma gradativa, já que à rivalidade permanente que as dominou inicialmente, sucedeu-se uma fase assente numa base de cooperação, que alcançaria, depois, uma cooperação verdadeiramente suportada por parcerias estratégicas – ligando especialmente os líderes dos Estados considerados –, até alcançarem um patamar de entendimento regional, do qual se afirmam efectivamente como eixo-motor. Neste processo evolutivo estão as relações em eixo na base de suporte, de modo que, de 1870 aos nossos dias, as relações franco-alemãs se afirmam essenciais para a criação, condução e consolidação do processo regional de integração da União Europeia.
As relações em eixo sugerem, desta forma, constituir-se como novo conceito paradigmático que se espera vir a ser incorporado pela Teoria das Relações Internacionais.
1. O PARADIGMA
As relações em eixo surgem como um paradigma que permite analisar a formação de processos integracionistas de forma gradativa: qualquer processo regional de integração que pretenda alcançar um nível considerável de aprofundamento económico-político-institucional, de acordo com a Teoria da Integração Regional, tem que passar por etapas gradativas nas quais as relações em eixo desempenham papel de fundamental importância, sem as quais dificilmente tais processos poderiam iniciar-se e consolidar-se.
Na ausência de relações em eixo unindo duas potências de uma mesma região, a integração regional limitar-se-á a uma vertente puramente económica. De acordo com a Teoria da Integração, será possível assistir-se à formação de uma zona de comércio livre e de uma união aduaneira. A partir daqui, torna-se difícil evoluir no sentido do mercado comum, da união económica e da união económica e monetária, sem que na base estejam as relações em eixo entre duas potências regionais.
Sendo a União Europeia o processo integracionista mais avançado do mundo (o único que constitui a forma mais evoluída da integração positiva, a União Económica e Monetária), naturalmente se afirma como base desta construção teórica.
Os restantes exemplos de integração regional (à excepção do MERCOSUL, aquele que mais se aproxima da União Europeia no sentido de estabelecer objectivos ambiciosos de longo de prazo, afirmando-se já como mercado comum) que organizam a sociedade internacional global num multilateralismo pós-westfaliano, pós-moderno e pós-hegemónico, à maneira de Robert Cox[2], não ultrapassam o âmbito económico; não têm, na base, relações em eixo unindo os dois maiores Estados de uma mesma região, mas também não têm objectivos ambiciosos em matéria de aprofundamento integracionista.
Existe, assim, uma correlação entre o papel desempenhado pela França e pela Alemanha, no seio da Europa, originando relações em eixo que os ligam, desempenhando, esse eixo, papel de força-motriz do entendimento bilateral, catalisando o contexto regional e, assim, derivando para a integração regional.
Tendo esta realidade como ponto de partida, o objectivo da análise é o de, aprofundando o paradigma do eixo, avançar com um novo conceito, o das relações em eixo que, assentando todavia naquele, aprofunda-o, ultrapassando o nível bilateral, em função do mais abrangente nível regional – configurando processos regionais de integração.
O paradigma das relações em eixo assenta, pois, no paradigma do eixo, amplamente utilizado no estudo das relações bilaterais e incorporado, já, pela Teoria.
O termo eixo é, efectivamente, utilizado para o estudo das relações bilaterais França-Alemanha, por especialistas dentre os quais se salientam Robert Picht, Hendrik Uterwedde, Wolfgang Wessels, Pierre Gerbet, Christian Lequesne, Helen Wallace, Klaus Grewlich, Christian de Boissieu, Hans-Eckart Scharrer, Françoise de la Serre, Axel Herbst e Jacques Morizet, uns favoráveis à existência efectiva de um eixo franco-alemão no seio da União Europeia, outros vigorosos críticos dessa realidade.
As relações em eixo surgem, neste contexto, como uma relação especial estabelecida entre duas potências que fazem entre si fronteiras vivas e desenvolvem uma profícua complementaridade económica, numa primeira fase assentando sobre rivalidades mútuas que evoluem, num segundo momento, para um comportamento cooperativo finalmente assente sobre verdadeiras parcerias estratégicas, designadamente entre os respectivos líderes políticos, cuja vontade de potência, elaboração política e percepções de interesses convergem num mesmo sentido, por forma a articular as ligações entre os núcleos dinâmicos do eixo sobre o qual assentam. Sobressaindo da região em que surgem pela criação de potência, as relações em eixo acabam por afirmar-se como o eixo de gravitação regional, beneficiando da aceitação popular que lhes reforça a coerência interna, ainda que sejam influenciadas por Estados terceiros, bem como pelas evoluções conjuntural (forças de pressão) e estrutural (forças profundas)[3] da região e da sociedade internacional global em que se inserem. Assim definidas, as relações em eixo funcionam como condição necessária para a existência de processos regionais de integração, estando na origem, na consolidação e condução destes pela força integradora que geram.
A correlação entre o processo de integração regional e as relações em eixo representa uma questão de fundo que tem caracterizado a realidade do processo europeu de integração regional, havendo uma interdependência entre a integração regional europeia e as relações em eixo franco-alemãs; assumindo-se estas, simultaneamente, como causa e efeito daquele.
O que se observa é que interesses divergentes entre as duas potências, através do movimento centrípeto originado pela estruturação de relações em eixo são transformados, se não em interesses iguais, ao menos em objectivos comuns que rendem vantagens a ambas as partes. O cálculo estratégico dos interesses nacionais dessas potências leva-as a construir uma rota comum de interesse expressa na elaboração das relações em eixo. A partir daqui, a política traçada por estas potências girará em torno de uma mesma essência, centro, apoio, sustentáculo, isto é, em torno de um mesmo eixo.
Daqui resulta, por um lado, a transformação dessas relações em eixo como ponto de referência para os Estados, da mesma região, menos potentes, que gravitam na sua órbita, já que as relações em eixo entre as duas potências continentais da Europa têm forte impacto sobre o contexto regional em que se inserem, designadamente para o equilíbrio desse contexto regional. Daqui resulta, por outro lado, o nascimento de um processo integracionista entre as partes constituintes do eixo. Integração essa necessária e rentável no contexto da ambivalência que conduz à estruturação de relações em eixo e que acaba por abarcar outros Estados da região.
É o reconhecimento da necessidade de transformar interesses divergentes que leva potências vizinhas a descortinar, no estabelecimento de relações em eixo, a única forma de alcançar a paz e, consigo, arrastar, na mesma direcção, a região de que fazem parte. A integração regional surge como uma acção colectiva visando reduzir os custos de transacção num contexto de economia aberta e optimizar os ganhos, de acordo com o Intergovernamentalismo pelo viés da Rational Choice, de Alan Milward[4]. Por outro lado, os Estados reunidos num processo regional de integração conseguem transformar interesses divergentes em interesses conciliáveis com vantagens recíprocas para todos, porquanto os Estados inscritos num regime internacional, como a União Europeia, estão inscritos num jogo de trocas repetidas em que, ora são ganhadores, ora perdedores, mas não têm, nunca, vantagem em retirar-se do jogo. A reciprocidade difusa de Keohane[5] torna o custo da defecção mais pesado do que o ganho da cooperação, conforme sugere o Institucionalismo Neoliberal, através da conjugação dos conceitos de regime internacional de Krasner[6] com o de jogo interactivo de Ruggie e o de reciprocidade difusa de Keohane.
2. OS ELEMENTOS CONCEPTUAIS DO PARADIGMA
As relações em eixo estruturadas entre duas potências de determinada região têm forte impacto sobre as relações regionais porque produzem um efeito de criação de potência, já que os Estados que assim se unem são potências regionais. Estados de peso relativo em função dos vizinhos que, com eles, compõem a região em que se inserem, têm os factores determinantes do poder, que lhes permitem adoptar politicas de força ou políticas de poder, assumindo-se como potências defensivas ou potências ofensivas, segundo o entendimento realista de Raymond Aron[7].
Não reunindo os elementos que lhes permitam actuar, influenciar e constranger os demais à sua vontade, os Estados não são considerados potências regionais. Deste modo, mesmo que estabeleçam, entre si, relações privilegiadas, estas nunca serão consideradas em eixo, porque não derivarão de uma situação de rivalidade, o que não determinará a necessidade de estabelecerem entre si relações em eixo como forma de as ultrapassar. Por isso, não influenciarão a região e não provocarão a criação de um processo de integração regional.
Sendo potências regionais, os dois Estados da mesma região, neste caso a França e a Alemanha, surgem, necessariamente, como unidades políticas rivais, porque cada um é afectado pela acção do outro, ao mesmo tempo que suspeita irreversivelmente das suas intenções. Actualmente, o comportamento cooperativo tem feito as relações em eixo franco-alemãs, outrora assentes sobre tensões e rivalidades, assentar mais sobre a cooperação que tem dado consistência às parcerias. Ainda assim, cada um dos Grandes continua a ser afectado pela acção do outro e a suspeita em torno das intenções mútuas e recíprocas mantém-se. Simplesmente, este comportamento encontra-se balizado pela criação deliberada, por ambos, de Autoridades Comuns que, se não impedem a adopção de comportamentos agressivos, têm-nos, pelo menos, tornado materialmente inconcretizáveis.
Por outro lado, e uma vez que as condições de capacidade, material e humana, administrativa e moral, dos dois Estados rivais variam, ao longo do tempo, sendo detidas apenas por estes Estados, sucede que, nuns momentos, um dos Estados detém a supremacia sobre o outro, enquanto, noutros momentos, a situação inverte-se: a França e a Alemanha vão-se intercalando na posição de hegemon regional segundo um movimento pendular, influenciando toda a Europa, fazendo as relações internacionais de região girar em torno das relações bilaterais dos dois Grandes.
Por isso, também, as relações em questão são em eixo, funcionam em eixo porque a França e a Alemanha erguem, entre si, uma recta de relacionamento em cujas extremidades se posicionam, equilibrando, melhor ou pior, interesses e objectivos conflituais, que pendem, ora para um, ora para outro, consoante aquele que, em determinado momento, assuma a posição de hegemon regional, num contexto em que os restantes países pouco peso relativo possuem na respectiva região, sujeitos, pois, ao caminhar tortuoso e cíclico das relações em eixo franco-alemãs, em que os períodos de rivalidade são intercalados com momentos de cooperação e paz e vice-versa.
Por outro lado, estes Estados, unidos em eixo, provocam forte impacto sobre a região em que estão inseridos, porque promovem a identificação sub-regional dos cidadãos ao processo integracionista a que as suas relações em eixo dão origem.
A ligação destas duas potências em eixo une indissoluvelmente os destinos desses países, o que permite que, por arrastamento, os cidadãos desses Estados se sintam também ligados. A contiguidade territorial é aqui determinante para associar os dois Estados, já que as correntes migratórias assim impulsionadas contribuem para a união dos mesmos, não só a nível político e económico, como também a nível social, cultural, psicológico. Importante, a contiguidade territorial não é, todavia, suficiente, porque os modos de pensar, as mentalidades, as formas de vida quotidiana, as práticas sociais de cada um dos dois povos não são facilmente conciliáveis.
Caberá, portanto, às Autoridades Públicas dos dois Estados unidos em eixo proceder à promoção do imaginário unificador através de iniciativas políticas com o objectivo de promover a identificação binacional das identidades nacionais que gravitam nas suas extremidades e sobre as quais as respectivas relações em eixo assentam, para que, depois, ocorra uma identificação regional que girará em torno daquela, de modo que as mesmas sejam legitimadas pelas populações como tal, que assim lhes reconhecem autoridade.
É evidente que as identidades locais ou nacionais são mais consistentes quando comparadas com as identidades regionais, em virtude da vinculação mais emocional do indivíduo à identidade nacional, assente no reconhecimento do território como sua pátria, da existência de mitos, memória histórica, cultura de massas, direitos e deveres comuns e de um espaço económico também comum, no qual têm total mobilidade.
Porém, o impacto que as relações em eixo têm sobre a Europa acabou conduzindo à criação de um processo de integração regional que se foi consolidando, à medida que evoluiu, surgindo com uma identidade internacional que se afirma válida na sociedade internacional global, porque é reconhecido, como processo regional de integração, no contexto da vizinhança, à escala continental e pela própria sociedade internacional global.
Para ultrapassar a vinculação mais forte do indivíduo à identidade nacional, na União Europeia, a identidade regional funciona na base dos impulsos políticos que lhe são dados pelo casal franco-alemão.
Tal não significa que a identidade regional europeia que assim consolida o processo europeu de integração regional elimine, ou pretenda diluir, no todo, as identidades nacionais. A aceitação da multiculturalidade e das diferenças, no contexto da União Europeia, dá-lhe consistência e coesão, sendo, por conseguinte, apenas necessário, que as lealdades locais e nacionais sejam tidas em conta na formação da vontade do processo integracionista, no procedimento diário das Instituições Comunitárias da União Europeia, através da elaboração do processo decisório, sendo certo que actividade política (politics) de um processo regional de integração tem que ser considerada, não como uma sucessão de decisões conjunturais, de instantâneos que impeçam a apreensão efectiva da dinâmica do processo, mas como uma série de decisões estratégicas (trajectórias – path dependency) englobadas numa lógica que é fornecida pela política geral desse processo de integração (policy), segundo o Institucionalismo Histórico de Paul Pierson.
As relações em eixo franco-alemãs representam a convergência de interesses entre estes dois Estados, no sentido de ultrapassarem os motivos de discórdia e empreenderem projectos de cooperação objectiva que estimulem a pacificação do continente, através da resolução do problema siderúrgico do Ruhr e do Sarre, bem como da Alsácia-Lorena.
Partindo destas condicionantes, as relações em eixo evoluíram no sentido da integração regional. Conduziram a Europa Ocidental pelos caminhos cooperativos da integração, quando os Dois decidiram encetar tal cooperação submetida a Autoridades Supranacionais. A determinação, costurada a dois – ainda que aberta à participação dos Estados da Europa Ocidental que desejassem, desde o início, participar –, ultrapassaria o âmbito puramente binacional, alçando o projecto a multinacional[8], desde o início, de modo que estiveram as relações em eixo na génese do processo europeu de integração como um processo multilateral, tomando emprestada a noção de John Ruggie, para quem multilateralismo é “uma forma institucional de coordenação das relações entre três ou mais Estados com base em princípios de conduta generalizados”[9].
Uma vez criado, na base das relações em eixo entre as duas potências regionais vizinhas, que funcionam como alicerces sobre os quais assenta, o processo europeu de integração permanece na dependência daquelas relações, as quais lhe permitem evoluir e consolidar-se.
De facto, do mesmo modo que pretender edificar constructos políticos, como a União Europeia, de objectivos amplamente ambiciosos, sem que na base estejam fortes ligações entre os Estados de maior peso relativo na região em que se localizam, significa fundar realidades de frágil embasamento, susceptíveis de desmoronamento aquando das primeiras dificuldades, também fazer evoluir tais constructos sem que activas se mantenham as relações em eixo significa seguir adiante com realidades desprovidas de um centro catalisador, eixo-motor capaz de tomar as decisões que a cada momento se impõem, ou criar as condições para que as mesmas sejam tomadas, no âmbito do trajecto ambicioso de integração traçado.
3. AS RELAÇÕES EM EIXO FRANCO-ALEMÃS
De 1870 (ano em que o fim da Guerra Franco-Prussiana permitiria a unificação da Alemanha, trazendo, à hegemónica França, um rival no espaço continental europeu) a 1945, as relações em eixo franco-alemãs haviam sido tensas, assentando numa base de rivalidades mútuas, essencialmente em torno da questão siderúrgica e da pujança económica do Ruhr, ligado à Alsácia-Lorena e ao Sarre.
A partir de 1945, o problema siderúrgico do Sarre e do Ruhr afirmou-se como o principal ponto de discórdia entre os Dois. Porém, a necessidade de relacionarem-se pacificamente levou-os a estabelecer relações em eixo assentes no medo e na desconfiança.
Na verdade, embora o sonho da unidade europeia tenha raízes seculares, foi no período entre as duas guerras mundiais que a ideia unificadora mais frutificou, encontrando, nos condicionalismos pós-Segunda Guerra Mundial, as condições ideais para iniciar-se. Ainda que efectivamente determinante tenha sido o pragmatismo da necessidade política de pacificar o Velho Continente, meta que surgia, aos olhos de todos, como algo alcançável apenas através do enquadramento das relações em eixo franco-alemãs em estruturas supranacionais que controlassem a produção franco-alemã do carvão e do aço, de modo a tornar qualquer esforço de guerra, não só impensável, como materialmente impossível e garantir a pacificação do relacionamento mútuo em torno da exploração siderúrgica e carbonífera do Ruhr e do Sarre, controlando, simultaneamente, a expansão económica dos dois rivais do Velho Continente, responsáveis pelas tensões e guerras que, desde o século XIX vinham opondo a França e primeiro a Prússia, depois a Alemanha.
A celebração do Tratado de Paris, em 1951, criando a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), marcou, neste sentido, o início da integração franco-alemã solucionando as questões em torno do Sarre e do Ruhr.
As relações em eixo franco-alemãs, evoluindo no sentido da cooperação, permitiram, assim, desbloquear o impasse franco-alemão, pondo em movimento uma engrenagem não bi, mas multilateral que, pelo jogo dos fenómenos económicos e políticos a que daria lugar, acabaria por ultrapassar o quadro apertado de uma organização sectorial, abrindo caminho à criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica (EURATOM) e, muito especialmente, da Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1957, pela assinatura dos Tratados de Roma.
É verdade que, na base do impulso franco-teutónico, a integração europeia teve motivações várias, conjugadas na busca do equilíbrio (procurando evitar o aumento de poder de uma potência que então se tornaria dominante) e na meta do comprometimento da potência dominante em estruturas abrangentes, de que a integração da Alemanha no projecto Schuman constitui exemplo paradigmático. A integração europeia gerou-se, também, em torno da constância dos interesses nacionais dos Estados europeus que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, passaram a vislumbrar a integração europeia como meio para se obter a pacificação do continente. Os motivos para a adesão dos Estados ao Projecto Europa convergem, ainda, na obtenção de um compromisso com valores comuns e princípios europeus – como a paz, os Direitos Humanos, a economia de mercado, os direitos sociais e a superação das rivalidades multisseculares – que jogam em simultâneo com os interesses particulares de cada Estado, desde os económicos, aos princípios próprios de cada um e às relações de vizinhança, bem como o efeito magnético de atracção que o sucesso das Comunidades acabaria por gerar entre os restantes Estados europeus. Simultaneamente, o contexto pós-Segunda Guerra Mundial teve um papel altamente integrador, em função da reacção europeia à perda de poder com a ascensão das superpotências na hierarquia internacional das potências.
O Projecto Europa nascia, assim, associado à ideia de funcionar como contrapeso ao expansionismo soviético, cuja ameaça se tornava sucessivamente mais intensa, colocando a Europa na linha da frente de um eventual assalto soviético. Nascia, também, associado à ideia de contrapor-se ao crescente peso económico norte-americano, de modo a permitir à Europa recuperar a posição relativa que, ante as restantes potências, havia até então ocupado no xadrez estratégico internacional. A integração europeia pretendia, deste modo, constituir uma terceira via, uma terceira força face aos expansionismos soviético e norte-americano, ao mesmo tempo que os nacionalismos europeus, obsoletos desde 1945, predispuseram os líderes políticos a cogitar formas transnacionais de organização. Estas foram, deste modo, favorecidas pela vontade política de determinados líderes, grandes estadistas europeus sem cuja acção política jamais poderia ter existido a convergência decidida de nações hostis, sobretudo da França e da Alemanha, que conduzisse à integração.
De modo paralelo, actuaram sempre iniciativas europeias privadas, fundamentais para sustentar o projecto europeu posto em movimento, as quais se colocaram em posição de vanguarda, funcionando como poderoso meio de pressão política. Igualmente determinante para concretizar o processo europeu de integração foi a consideração, pela Alemanha, de que a sua participação em tal projecto permitir-lhe-ia resolver o problema da divisão do país, o que fez com que a integração europeia, desejada pela França como forma de enquadrar a Alemanha – e, numa fase inicial, o rearmamento alemão –, fosse também desejada pela Alemanha, que assim poderia, também, integrar-se nas estruturas da sociedade internacional ocidental, para então alcançar a independência e soberania temporariamente perdidas[10].
Assente nestas linhas de motivação, a União Europeia organizou-se no sentido do modelo da interdependência mediante integração, na base das relações em eixo franco-alemãs, mas incluindo também outros Estados que, marginais ao eixo, têm igualmente uma função importante a desempenhar em prol da integração europeia. Desde logo, funcionam como contrapeso à força centrípeta desempenhada pelas relações em eixo franco-alemãs, constituindo, não raras vezes, minorias de bloqueio que tornam o processo comunitário de decisão verdadeiramente comunitário, garantindo que a vontade da União Europeia, senão resultado da vontade consensual de todos os Estados-membros, resulte, pelo menos, de uma negociação que se torna indispensável.
O peso dos pequenos Estados-membros surge, neste contexto, particularmente importante, por evitar a dominação da União Europeia por um directório liderado pelo eixo-motor franco-alemão, papel visivelmente desempenhado pelo Reino Unido. Potência média, o Reino Unido rapidamente concluiu que excluir-se do projecto que pretendera destroçar inicialmente não lhe traria senão desvantagens económicas e, após ultrapassada a firme oposição de De Gaulle, que a compreendia como a entrada subreptícia dos Estados Unidos nos esforços europeus de cooperação, os Britânicos alcançaram a aceitação da adesão, concretizada em 1973. Desde então, e até hoje, o Reino Unido tem vindo a desempenhar, na União Europeia, a função de chefe de fila dos cepticismos que barram a evolução da integração europeia, ao mesmo tempo que criam reflexões sobre a essência mesma da União Europeia, assim contribuindo para fortalecê-la.
Aproveitando, neste contexto, o caminho aberto pela criação da CECA, da CEE e da EURATOM, ao mesmo tempo que se frustravam as tentativas de integração política a Seis, a França e a Alemanha decidiram encetá-la a dois, estabelecendo, definitivamente, o entendimento bilateral concertado com a assinatura do Tratado do Eliseu (Janeiro de 1963).
Apesar dos problemas que envolveram a ratificação deste pela Alemanha e do fraco alcance que se lhe pode atribuir como criador de estruturas concretas de acção concertada entre a França e a Alemanha, a verdade é que o Tratado do Eliseu tem uma importância determinante na consolidação, entre os dois Estados, das relações em eixo capazes de originar a integração regional, já que foi a partir daí que a almejada pacificação entre os Dois Grandes rivais continentais da Europa efectivamente ganhou contornos de realidade insofismável, concretizando a substituição das rivalidades em que assentavam as relações em eixo por um comportamento amplamente cooperativo.
Criadas as Comunidades em função do papel líder desempenhado pela França e pela Alemanha no seio da Europa Ocidental, estes Estados assumem-se como o eixo central de toda a União Europeia, determinando um elevado grau de coesão à região e, desta forma, ao projecto integracionista então iniciado, posteriormente aprofundado, paralelamente aos vários alargamentos, estimulado pela acção propulsora do entendimento dos líderes alemães e franceses. Monnet-Schuman, De Gasperi-Adenauer, Spaak-Monnet assumiram-se, desde logo, como parcerias importantes para o esforço de pacificação do Velho Continente, prelúdio das parcerias verdadeiramente franco-alemãs que a História não se cansaria de repetir. Adenauer-Schuman, Adenauer-De Gaulle, Schmidt-D`Estaign, Mitterrand-Kohl seriam parcerias determinantes para a construção da Europa Unida que hoje temos, ainda que o panorama tenha também sido manchado por entendimentos bilaterais não tão profícuos, como o que uniu Schröder e Chirac, ou como o que desuniu Ludwig Erhard e De Gaulle, estando por caracterizar o que hoje une, até ver, Chirac e Angela Merckel. A partir de determinado momento, todavia, a velocidade de evolução é mais lenta, mas existe, comprovando, no fundo, a relevância das referidas parcerias, os casais vinte das relações franco-alemãs.
Na verdade, tem sido o casal franco-alemão a impulsionar a força integradora das Comunidades, hoje União Europeia. De facto, na Europa, o impulso federalista, desencadeado pelo Congresso da Haia de 1948, teve continuação com a criação do Conselho da Europa no ano seguinte, com a Declaração Schuman de 1950, a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, no ano seguinte, com a criação da Comunidade Económica Europeia e, simultaneamente, a Comunidade Europeia da Energia Atómica, em 1957, e com a assinatura do Tratado do Eliseu, em 1963, como início de uma caminhada que, ante avanços e recuos, conduziria a décadas de construção europeia, com o Acto Único Europeu, o Tratado de Maastricht e a transformação das Comunidades em União Europeia, integrando a Política Externa e de Segurança Comum e a Cooperação no Domínio da Justiça e dos Assuntos Internos, o Tratado de Amesterdão, o Tratado de Nice, o Tratado Constitucional, os vários alargamentos, sobretudo o de Maio de 2004, nas quais sempre ressaltaria o papel de liderança do eixo franco-germânico, criando laços e interdependências numa rede complexa e multifuncional que, se não pacificou essas relações, ao menos enquadrou-as politicamente, por forma a resolver, diplomaticamente, os conflitos.
Simultaneamente, tem sido o casal franco-alemão a permitir ultrapassar as dificuldades que à integração europeia se têm, desde o início, deparado. O fracasso da Comunidade Europeia de Defesa e da Comunidade Política, do Plano Fouchet e da integração política; a crise da chaise vide; o eurocepticismo dos anos setenta; as dificuldades de ratificação do Tratado de Maastricht e, hoje, do Tratado Constitucional; os desentendimentos surgidos nas revisões realizadas, aos Tratados Comunitários, em Amesterdão e Nice, não só entre todos os Estados-membros, como particularmente entre a França e a Alemanha relativamente à questão do emprego e à aprovação do Pacto de Estabilidade; as dificuldades que envolveram todo o processo de entrada na terceira fase da União Económica e Monetária, de cumprimento dos critérios de convergência e de entrada em vigor da Moeda Única afirmaram-se como dificuldades que o motor franco-alemão logrou solucionar e ultrapassar, afirmando-se, nas décadas de construção europeia que marcam o percurso europeu até aos dias de hoje, como verdadeira locomotiva da União Europeia, cuja condução e consolidação se lhe fica a dever. Até pela consideração de que a Alemanha precisava da França para realizar a União Política, que Kohl considerava como imprescindível, enquanto Paris necessitava da Alemanha para construir a União Económica, que Miterrand desejava acima de tudo. Para a França, os seus interesses estariam melhor acautelados se a força económica da Alemanha estivesse integrada numa União Económica e Monetária e enquadrada numa Política Externa e de Segurança Comum que limitasse a capacidade de actuação autónoma da Alemanha e a conquistasse para o reforço organizacional e tecnológico dos meios militares da União Europeia, de modo a alcançar-se maior autonomia de decisão face aos Estados Unidos, numa complementaridade de interesses entre a França (onde a força económica era muito inferior às ambições políticas) e a Alemanha (onde a pujança económica era muito superior ao peso político) determinante para consolidar a integração regional europeia centrada sobre as relações em eixo Paris-Bona.
As dinâmicas, hoje, são distintas. Todavia, o papel de eixo-motor mantém-se para as relações em eixo franco-alemãs. Efectivamente, a União Europeia depara-se, hoje, não apenas com a questão do alargamento desmesurado aos Estados da Europa Central e Oriental, bem como à Turquia, sucessivamente adiado, ainda que as negociações para uma futura adesão se tenham finalmente iniciado a 3 de Outubro de 2005, como com a problemática que tem envolvido a ratificação, pelos Estados-membros, do Tratado Constitucional Europeu, como ainda com o potencial que a Alemanha em seu seio representa. Sendo o Estado mais rico, mais forte e mais populoso de todos os Estados-membros da União, a Alemanha, após ter recuperado o papel político que durante anos lhe estivera vedado, na sequência da desagregação do Império Soviético, assumiu um lugar central no seio da União Europeia, que a localização geográfica no coração da Europa vem reforçar.
Para que o eixo franco-alemão continue a funcionar como motor central da integração europeia e como cerne das relações franco-alemãs pacificadas, é necessário, por um lado, que a Alemanha esteja disposta a sacrificar os atributos de grande potência, que a União Europeia seja capaz de conviver com uma Alemanha assim fortificada, combinando a fraqueza e a divisão que hoje a afectam com o poder reunificado que cresce em seu seio e, ainda, que, reconhecendo a grande influência que a Alemanha tem junto dos Estados-membros e junto dos Estados da Europa Central e Oriental, fruto da sua tradicional política externa, a União Europeia lhe permita estar integrada num processo regional de integração que funcione como unidade estratégica, dotada de uma verdadeira Política Externa e de Segurança Comum. Tal permitirá à Alemanha exercer os atributos de grande potência integrada na União Europeia e irreversivelmente ligada à França, em simbiose mútua, no seio da qual a Alemanha permanecerá pacificamente e a União Europeia fortalecer-se-á, conjugando os binómios alargamento-aprofundamento político, de modo a reforçar a confiança em si própria e, a partir daqui, enquadrar os dilemas que a envolvem na actualidade. Se, além disto, a União conseguir formular uma estrutura de defesa própria, o modelo franco-alemão de cooperação militar existente será, certamente, o eixo central dessa nova força, o que coloca, uma vez mais, as relações em eixo franco-alemãs no cerne da condução e consolidação do processo europeu de integração.
CONCLUSÃO
A integração regional é um fenómeno multidimensional, que pode decompor-se em várias ordens de apreciação, sendo, porém, o nível essencial, que lhe está na base, e sem cuja existência seria difícil, sequer, um processo integracionista ter origem, o das relações em eixo, o substrato sobre o qual se gera, alarga, aprofunda e ganha consistência o processo regional de integração.
Os poderes hegemónicos têm, com efeito, a capacidade de fornecer a estabilidade que aumenta a segurança e o bem-estar dos Estados de menores dimensões, contribuindo, desta forma, para o comportamento cooperativo, porquanto fornecem a base para a realização de vantagens mútuas sob a forma de mercados em expansão ou de protecção militar.
É verdade que, para superar e contornar obstáculos é necessária uma predisposição para a negociação lenta e paciente o que, para a vivência europeia em geral, constitui já um aprendizado adquirido; aquele do ritmo lento e profundo da história institucional dos grandes constructos multiculturais e multissociais, assentes nos substantivos que dão continuidade e sustentação às linhas de longa duração da construção europeia: a persistência, a perseverança, a paciência, a prudência e a parceria[11], conjugados com a acção sempre visível das relações em eixo franco-alemãs, sendo certo que o modelo das relações em eixo pode ampliar-se à esfera mundial se, como novo conceito paradigmático, contribuir para a configuração de um mundo multipolar, porém organizado em estruturas hegemónicas que estabelecem, como objectivo de acção, a manutenção das posições dominantes que conduz à perpetuação das assimetrias entre os Estados.
De facto, o conceito de relações em eixo pode qualificar o tipo de relações bilaterais que esses países estabelecem entre si. Embora não pretendam originar processos integracionistas reúnem, nas suas relações mútuas, os elementos constitutivos do conceito de relações em eixo. Assim surgem como relações especiais estabelecidas entre potências que, embora nem sempre façam entre si fronteiras vivas, desenvolvem profícua complementaridade económica, articulando as ligações entre os núcleos dinâmicos dos eixos sobre os quais assentam e beneficiam da aceitação popular que lhes reforça a coerência interna, ainda que naturalmente influenciados por Estados terceiros, pelas forças de pressão e pelas forças profundas. Originadas por rivalidades, sobretudo, mas não só, relativas à hegemonia sobre as regiões que disputam, estas potências unem-se em eixo em função dessas rivalidades, as quais determinam a necessidade daquelas se relacionarem, num movimento pendular de hegemonia-dominação, vislumbrando, depois, no comportamento cooperativo, a melhor forma de, entendendo-se, proporcionar ganhos conjuntos de modo a eliminar os custos da não-relação. A vontade de potência dos respectivos líderes, assim como a elaboração política e as percepções de interesse convergem, pois, num mesmo sentido, formatando as relações em eixo que acabam por ter forte impacto sobre a respectiva região. Deste modo, a expansão das relações em eixo poderá ser amplamente vantajosa na Europa, funcionando como elemento para robustecer outros eixos que contribuam para a coesão da União Europeia a vinte e cinco, operando igualmente vantagens comparativas e, por conseguinte, ampliando as capacidades de poder. Na sua essência, as relações em eixo também podem, na União Europeia hoje alargada e suspensa nas contradições impostas pelo engano constitucional, funcionar como proposta de saída do impasse, promovendo a compreensão da necessidade do alargamento como garantia da paz continental, ainda que se saiba, de antemão, quão custoso, financeiramente, será o alargamento – o que desde Maio de 2004 actua já na negociação das Perspectivas Financeiras para o período de 2007 a 2013 e aquele que, certamente, aos limites de Vladivostok chegará um dia.
A comunidade epistémica de relações internacionais não é, todavia, unânime na nossa consideração das relações em eixo ranco-alemãs como elemento essencial para a génese, condução e consolidação do processo europeu de integração regional.
Duas opiniões formam-se em torno da compreensão do papel que jogam as convergências e divergências das relações em eixo franco-alemãs no seio doa União Europeia.
A corrente adepta do argumento que elaborámos, respaldada por Robert Picht, Hendrik Uterwedde, Wolfgang Wessels, Klaus Grewlich, Jacques Morizet e Pierre Gerbet e a corrente oposta, respaldada por Christian Lequesne, Helen Wallace, Françoise de la Serre e Axel Herbst.
Esta corrente considera um mito a convergência franco-alemã, menosprezando o nível de harmonização entre si existente e considerando os mecanismos de concertação franco-alemães demasiado complexos, ao mesmo tempo que salienta as crises de confiança que vão surgindo entre os casais.
A visão pragmática, que intermedia as duas posições, apela à complementação entre a integração e a geometria variável e, reconhecendo que, apesar de tudo, o progresso da União Europeia é inviável quando existe um desacordo franco-alemão, Christian de Boissieu e Hans-Eckart Scharrer ressaltam a existência de outros eixos no seio da União Europeia, como os que ligam Berlim e Londres, Paris e Londres e, cada vez mais, Roma e Madrid, funcionando o casal franco-alemão, não raras vezes, como minoria de bloqueio no processo de formação da vontade comunitária.
A realidade da integração europeia, todavia, conduz-nos à orientação que avalia as relações em eixo franco-alemãs como motor da integração regional europeia, podendo a generalização ser feita, a partir de análise semelhante feita ao papel das relações argentino-brasileiras, também em eixo, no seio do Cone Sul, da América do Sul de modo mais abrangente e da América Latina de modo mais abrangente ainda, na conformação do MERCOSUL.
De facto, mesmo que existam divergências entre os Estados unidos por relações em eixo, mesmo que muitas vezes o acordo seja difícil de alcançar entre si, mesmo que a cooperação bilateral sem sempre seja tão profícua quanto desejável, a verdade é que os casais franco-alemães têm sabido ultrapassar as divergências e as dificuldades.
Estas, em lugar de enfraquecer as relações em eixo, constituem testes à capacidade e vontade políticas dos Estados assim unidos em fortalecer tais relações mútuas especiais que, por conseguinte, assentes sobre um eixo, funcionam como base do processo europeu de integração, surgindo as relações em eixo como novo conceito paradigmático da Teoria das Relações Internacionais.
[1] Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Docente no I.S.C.S.P.
[2] Cfr. SMOUTS, Marie-Claude; “As Novas Relações Internacionais : Práticas e Teorias”, Editora UnB, tradução de Georgete M.Rodrigues, 1ª edição brasileira, Brasília DF, 2004, pp.146, citando COX, Robert ; « The New Realism. Perspectives on Multilateralism and World Order”, New York, United Nations University Press, 1997.
[3] Cfr. DUROSELLE, Jean-Baptiste; “Todo Império Perecerá – Teoria das Relações Internacionais”, Editora UnB, Universidade de Brasília, Imprensa Oficial do Estado, São Paulo 2000, tradução de Anne Lize Spaltemberg de Siqueira Magalhães, 1a. Edição de 1992 por Armand Colin Publisher; e Cfr. RENOUVIN, Pierre (diréction); “Histoire des Relations Internationales », Éditions Hachette, 1ere Édition, Paris, 1958, 8 tomos ;
[4] Ferramenta teórica útil para compreender-se a integração regional, mas apenas do ponto de vista económico, já que esta visão reduz a integração à integração económica.
[5] Cfr. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; “Power and Interdependence”, 3rd edition, Library of Congress Cataloging in-Publication Data, Longman Editions, New York, 2001.
[6] Cfr. KRASNER, Stephen; “International Regimes”, edited by Peter Katzenstein, Cornell University Press, 8th Edition, Ithaca, USA, 1995. Sobre a teoria dos regimes vide também as colaborações de Friedrich Kratochwil, John Gerard Ruggie, Duncan Snidal, Oran Young, Peter Haas, Robert Cox e Ernest Haas em KRATOCHWIL, Friedrich e MANSFIELD, Edward D.; “Iternational Organization – a Reader”,386 páginas, Longman Edition, 1st Edition, New York, 1994.
[7] Cfr. ARON, Raymond; “Paz e Guerra entre as Nações”, Colecção Clássicos do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Imprensa Oficial do Estado, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI, tradução de Sérgio Bath, prefácio de António Paim, 1ª edição brasileira, Editora da UnB, Brasília DF, 2002, pp. 99. Tendo desde logo em conta a distinção, feita pelo autor, entre poder e potência, contemplada na tradução brasileira utilizada, de forma bastante confusa, numa mistura incorrecta dos conceitos de poder, potência e forç , mas muito clara na versão francesa original. A potência surge, assim, como um poder em potencial, que pode ser utilizado, mas que o não é. Assim como die Macht representa le pouvoir, o poder, enquanto die Herrschaft significa la puissance, a potência. La puissance, die Herrschaft, a potência só se tranforma em pouvoir, die Macht, poder, quando se concretiza na prática, isto é, quando se aplica em circunstâncias e com objectivos determinados.
[8] Os países limítrofes, ante a união das duas maiores economias da região, não hesitaram em juntar-se de início ao projecto, procurando participar da pacificação do continente e proteger-se, quer da crescente ameaça soviética, quer do crescente poder económico norte-americano.
[9] Cfr. RUGGIE, John Gerard; “Multilateralism: The Anatomy of an Institution”, in RUGGIE, John Gerard; “Multilateralism Matters: The Theory and Praxis of an Institutional Form”, Columbia University Press, New York, 1993, pp.11, citado por DOUGHERTY, James E. E PEALTZGRAFF, Robert L. Jr.; “Relações Internacionais – As Teorias em Confronto”, tradução de Marcos Farias Ferreira, Mónica Sofia Ferro, Maria João Ferreira, coordenação científica de Victor Marques dos Santos e Heitor Barras Romana, 1ª edição portuguesa, Lisboa, Outubro de 2003, pp.643-644.
[10] Cfr. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende; “Relações Internacionais – Cultura e Poder”, Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), UnB, Universidade de Brasília, com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), Brasília DF, 2002,pp.222-228 e PFETSCH, Frank; ; “A União Européia – História, Instituições, Processos”, Colecção Relações Internacionais, tradução de Estevão C.R.Martins, Editora UnB, 1ª Edição, Brasília DF, Outubro de 2002, pp.15-67.
[11]Cfr. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende; “A Construção da União Européia: Uma Questão de Princípios”, Julho de 2002, 12 páginas, exemplar não publicado gentilmente cedido pelo autor, pp.2.
Raquel Patrício
INTRODUÇÃO
De 1870 aos nossos dias, as relações franco-alemãs, submetidas aos condicionalismos regionais, evoluíram forma gradativa, já que à rivalidade permanente que as dominou inicialmente, sucedeu-se uma fase assente numa base de cooperação, que alcançaria, depois, uma cooperação verdadeiramente suportada por parcerias estratégicas – ligando especialmente os líderes dos Estados considerados –, até alcançarem um patamar de entendimento regional, do qual se afirmam efectivamente como eixo-motor. Neste processo evolutivo estão as relações em eixo na base de suporte, de modo que, de 1870 aos nossos dias, as relações franco-alemãs se afirmam essenciais para a criação, condução e consolidação do processo regional de integração da União Europeia.
As relações em eixo sugerem, desta forma, constituir-se como novo conceito paradigmático que se espera vir a ser incorporado pela Teoria das Relações Internacionais.
1. O PARADIGMA
As relações em eixo surgem como um paradigma que permite analisar a formação de processos integracionistas de forma gradativa: qualquer processo regional de integração que pretenda alcançar um nível considerável de aprofundamento económico-político-institucional, de acordo com a Teoria da Integração Regional, tem que passar por etapas gradativas nas quais as relações em eixo desempenham papel de fundamental importância, sem as quais dificilmente tais processos poderiam iniciar-se e consolidar-se.
Na ausência de relações em eixo unindo duas potências de uma mesma região, a integração regional limitar-se-á a uma vertente puramente económica. De acordo com a Teoria da Integração, será possível assistir-se à formação de uma zona de comércio livre e de uma união aduaneira. A partir daqui, torna-se difícil evoluir no sentido do mercado comum, da união económica e da união económica e monetária, sem que na base estejam as relações em eixo entre duas potências regionais.
Sendo a União Europeia o processo integracionista mais avançado do mundo (o único que constitui a forma mais evoluída da integração positiva, a União Económica e Monetária), naturalmente se afirma como base desta construção teórica.
Os restantes exemplos de integração regional (à excepção do MERCOSUL, aquele que mais se aproxima da União Europeia no sentido de estabelecer objectivos ambiciosos de longo de prazo, afirmando-se já como mercado comum) que organizam a sociedade internacional global num multilateralismo pós-westfaliano, pós-moderno e pós-hegemónico, à maneira de Robert Cox[2], não ultrapassam o âmbito económico; não têm, na base, relações em eixo unindo os dois maiores Estados de uma mesma região, mas também não têm objectivos ambiciosos em matéria de aprofundamento integracionista.
Existe, assim, uma correlação entre o papel desempenhado pela França e pela Alemanha, no seio da Europa, originando relações em eixo que os ligam, desempenhando, esse eixo, papel de força-motriz do entendimento bilateral, catalisando o contexto regional e, assim, derivando para a integração regional.
Tendo esta realidade como ponto de partida, o objectivo da análise é o de, aprofundando o paradigma do eixo, avançar com um novo conceito, o das relações em eixo que, assentando todavia naquele, aprofunda-o, ultrapassando o nível bilateral, em função do mais abrangente nível regional – configurando processos regionais de integração.
O paradigma das relações em eixo assenta, pois, no paradigma do eixo, amplamente utilizado no estudo das relações bilaterais e incorporado, já, pela Teoria.
O termo eixo é, efectivamente, utilizado para o estudo das relações bilaterais França-Alemanha, por especialistas dentre os quais se salientam Robert Picht, Hendrik Uterwedde, Wolfgang Wessels, Pierre Gerbet, Christian Lequesne, Helen Wallace, Klaus Grewlich, Christian de Boissieu, Hans-Eckart Scharrer, Françoise de la Serre, Axel Herbst e Jacques Morizet, uns favoráveis à existência efectiva de um eixo franco-alemão no seio da União Europeia, outros vigorosos críticos dessa realidade.
As relações em eixo surgem, neste contexto, como uma relação especial estabelecida entre duas potências que fazem entre si fronteiras vivas e desenvolvem uma profícua complementaridade económica, numa primeira fase assentando sobre rivalidades mútuas que evoluem, num segundo momento, para um comportamento cooperativo finalmente assente sobre verdadeiras parcerias estratégicas, designadamente entre os respectivos líderes políticos, cuja vontade de potência, elaboração política e percepções de interesses convergem num mesmo sentido, por forma a articular as ligações entre os núcleos dinâmicos do eixo sobre o qual assentam. Sobressaindo da região em que surgem pela criação de potência, as relações em eixo acabam por afirmar-se como o eixo de gravitação regional, beneficiando da aceitação popular que lhes reforça a coerência interna, ainda que sejam influenciadas por Estados terceiros, bem como pelas evoluções conjuntural (forças de pressão) e estrutural (forças profundas)[3] da região e da sociedade internacional global em que se inserem. Assim definidas, as relações em eixo funcionam como condição necessária para a existência de processos regionais de integração, estando na origem, na consolidação e condução destes pela força integradora que geram.
A correlação entre o processo de integração regional e as relações em eixo representa uma questão de fundo que tem caracterizado a realidade do processo europeu de integração regional, havendo uma interdependência entre a integração regional europeia e as relações em eixo franco-alemãs; assumindo-se estas, simultaneamente, como causa e efeito daquele.
O que se observa é que interesses divergentes entre as duas potências, através do movimento centrípeto originado pela estruturação de relações em eixo são transformados, se não em interesses iguais, ao menos em objectivos comuns que rendem vantagens a ambas as partes. O cálculo estratégico dos interesses nacionais dessas potências leva-as a construir uma rota comum de interesse expressa na elaboração das relações em eixo. A partir daqui, a política traçada por estas potências girará em torno de uma mesma essência, centro, apoio, sustentáculo, isto é, em torno de um mesmo eixo.
Daqui resulta, por um lado, a transformação dessas relações em eixo como ponto de referência para os Estados, da mesma região, menos potentes, que gravitam na sua órbita, já que as relações em eixo entre as duas potências continentais da Europa têm forte impacto sobre o contexto regional em que se inserem, designadamente para o equilíbrio desse contexto regional. Daqui resulta, por outro lado, o nascimento de um processo integracionista entre as partes constituintes do eixo. Integração essa necessária e rentável no contexto da ambivalência que conduz à estruturação de relações em eixo e que acaba por abarcar outros Estados da região.
É o reconhecimento da necessidade de transformar interesses divergentes que leva potências vizinhas a descortinar, no estabelecimento de relações em eixo, a única forma de alcançar a paz e, consigo, arrastar, na mesma direcção, a região de que fazem parte. A integração regional surge como uma acção colectiva visando reduzir os custos de transacção num contexto de economia aberta e optimizar os ganhos, de acordo com o Intergovernamentalismo pelo viés da Rational Choice, de Alan Milward[4]. Por outro lado, os Estados reunidos num processo regional de integração conseguem transformar interesses divergentes em interesses conciliáveis com vantagens recíprocas para todos, porquanto os Estados inscritos num regime internacional, como a União Europeia, estão inscritos num jogo de trocas repetidas em que, ora são ganhadores, ora perdedores, mas não têm, nunca, vantagem em retirar-se do jogo. A reciprocidade difusa de Keohane[5] torna o custo da defecção mais pesado do que o ganho da cooperação, conforme sugere o Institucionalismo Neoliberal, através da conjugação dos conceitos de regime internacional de Krasner[6] com o de jogo interactivo de Ruggie e o de reciprocidade difusa de Keohane.
2. OS ELEMENTOS CONCEPTUAIS DO PARADIGMA
As relações em eixo estruturadas entre duas potências de determinada região têm forte impacto sobre as relações regionais porque produzem um efeito de criação de potência, já que os Estados que assim se unem são potências regionais. Estados de peso relativo em função dos vizinhos que, com eles, compõem a região em que se inserem, têm os factores determinantes do poder, que lhes permitem adoptar politicas de força ou políticas de poder, assumindo-se como potências defensivas ou potências ofensivas, segundo o entendimento realista de Raymond Aron[7].
Não reunindo os elementos que lhes permitam actuar, influenciar e constranger os demais à sua vontade, os Estados não são considerados potências regionais. Deste modo, mesmo que estabeleçam, entre si, relações privilegiadas, estas nunca serão consideradas em eixo, porque não derivarão de uma situação de rivalidade, o que não determinará a necessidade de estabelecerem entre si relações em eixo como forma de as ultrapassar. Por isso, não influenciarão a região e não provocarão a criação de um processo de integração regional.
Sendo potências regionais, os dois Estados da mesma região, neste caso a França e a Alemanha, surgem, necessariamente, como unidades políticas rivais, porque cada um é afectado pela acção do outro, ao mesmo tempo que suspeita irreversivelmente das suas intenções. Actualmente, o comportamento cooperativo tem feito as relações em eixo franco-alemãs, outrora assentes sobre tensões e rivalidades, assentar mais sobre a cooperação que tem dado consistência às parcerias. Ainda assim, cada um dos Grandes continua a ser afectado pela acção do outro e a suspeita em torno das intenções mútuas e recíprocas mantém-se. Simplesmente, este comportamento encontra-se balizado pela criação deliberada, por ambos, de Autoridades Comuns que, se não impedem a adopção de comportamentos agressivos, têm-nos, pelo menos, tornado materialmente inconcretizáveis.
Por outro lado, e uma vez que as condições de capacidade, material e humana, administrativa e moral, dos dois Estados rivais variam, ao longo do tempo, sendo detidas apenas por estes Estados, sucede que, nuns momentos, um dos Estados detém a supremacia sobre o outro, enquanto, noutros momentos, a situação inverte-se: a França e a Alemanha vão-se intercalando na posição de hegemon regional segundo um movimento pendular, influenciando toda a Europa, fazendo as relações internacionais de região girar em torno das relações bilaterais dos dois Grandes.
Por isso, também, as relações em questão são em eixo, funcionam em eixo porque a França e a Alemanha erguem, entre si, uma recta de relacionamento em cujas extremidades se posicionam, equilibrando, melhor ou pior, interesses e objectivos conflituais, que pendem, ora para um, ora para outro, consoante aquele que, em determinado momento, assuma a posição de hegemon regional, num contexto em que os restantes países pouco peso relativo possuem na respectiva região, sujeitos, pois, ao caminhar tortuoso e cíclico das relações em eixo franco-alemãs, em que os períodos de rivalidade são intercalados com momentos de cooperação e paz e vice-versa.
Por outro lado, estes Estados, unidos em eixo, provocam forte impacto sobre a região em que estão inseridos, porque promovem a identificação sub-regional dos cidadãos ao processo integracionista a que as suas relações em eixo dão origem.
A ligação destas duas potências em eixo une indissoluvelmente os destinos desses países, o que permite que, por arrastamento, os cidadãos desses Estados se sintam também ligados. A contiguidade territorial é aqui determinante para associar os dois Estados, já que as correntes migratórias assim impulsionadas contribuem para a união dos mesmos, não só a nível político e económico, como também a nível social, cultural, psicológico. Importante, a contiguidade territorial não é, todavia, suficiente, porque os modos de pensar, as mentalidades, as formas de vida quotidiana, as práticas sociais de cada um dos dois povos não são facilmente conciliáveis.
Caberá, portanto, às Autoridades Públicas dos dois Estados unidos em eixo proceder à promoção do imaginário unificador através de iniciativas políticas com o objectivo de promover a identificação binacional das identidades nacionais que gravitam nas suas extremidades e sobre as quais as respectivas relações em eixo assentam, para que, depois, ocorra uma identificação regional que girará em torno daquela, de modo que as mesmas sejam legitimadas pelas populações como tal, que assim lhes reconhecem autoridade.
É evidente que as identidades locais ou nacionais são mais consistentes quando comparadas com as identidades regionais, em virtude da vinculação mais emocional do indivíduo à identidade nacional, assente no reconhecimento do território como sua pátria, da existência de mitos, memória histórica, cultura de massas, direitos e deveres comuns e de um espaço económico também comum, no qual têm total mobilidade.
Porém, o impacto que as relações em eixo têm sobre a Europa acabou conduzindo à criação de um processo de integração regional que se foi consolidando, à medida que evoluiu, surgindo com uma identidade internacional que se afirma válida na sociedade internacional global, porque é reconhecido, como processo regional de integração, no contexto da vizinhança, à escala continental e pela própria sociedade internacional global.
Para ultrapassar a vinculação mais forte do indivíduo à identidade nacional, na União Europeia, a identidade regional funciona na base dos impulsos políticos que lhe são dados pelo casal franco-alemão.
Tal não significa que a identidade regional europeia que assim consolida o processo europeu de integração regional elimine, ou pretenda diluir, no todo, as identidades nacionais. A aceitação da multiculturalidade e das diferenças, no contexto da União Europeia, dá-lhe consistência e coesão, sendo, por conseguinte, apenas necessário, que as lealdades locais e nacionais sejam tidas em conta na formação da vontade do processo integracionista, no procedimento diário das Instituições Comunitárias da União Europeia, através da elaboração do processo decisório, sendo certo que actividade política (politics) de um processo regional de integração tem que ser considerada, não como uma sucessão de decisões conjunturais, de instantâneos que impeçam a apreensão efectiva da dinâmica do processo, mas como uma série de decisões estratégicas (trajectórias – path dependency) englobadas numa lógica que é fornecida pela política geral desse processo de integração (policy), segundo o Institucionalismo Histórico de Paul Pierson.
As relações em eixo franco-alemãs representam a convergência de interesses entre estes dois Estados, no sentido de ultrapassarem os motivos de discórdia e empreenderem projectos de cooperação objectiva que estimulem a pacificação do continente, através da resolução do problema siderúrgico do Ruhr e do Sarre, bem como da Alsácia-Lorena.
Partindo destas condicionantes, as relações em eixo evoluíram no sentido da integração regional. Conduziram a Europa Ocidental pelos caminhos cooperativos da integração, quando os Dois decidiram encetar tal cooperação submetida a Autoridades Supranacionais. A determinação, costurada a dois – ainda que aberta à participação dos Estados da Europa Ocidental que desejassem, desde o início, participar –, ultrapassaria o âmbito puramente binacional, alçando o projecto a multinacional[8], desde o início, de modo que estiveram as relações em eixo na génese do processo europeu de integração como um processo multilateral, tomando emprestada a noção de John Ruggie, para quem multilateralismo é “uma forma institucional de coordenação das relações entre três ou mais Estados com base em princípios de conduta generalizados”[9].
Uma vez criado, na base das relações em eixo entre as duas potências regionais vizinhas, que funcionam como alicerces sobre os quais assenta, o processo europeu de integração permanece na dependência daquelas relações, as quais lhe permitem evoluir e consolidar-se.
De facto, do mesmo modo que pretender edificar constructos políticos, como a União Europeia, de objectivos amplamente ambiciosos, sem que na base estejam fortes ligações entre os Estados de maior peso relativo na região em que se localizam, significa fundar realidades de frágil embasamento, susceptíveis de desmoronamento aquando das primeiras dificuldades, também fazer evoluir tais constructos sem que activas se mantenham as relações em eixo significa seguir adiante com realidades desprovidas de um centro catalisador, eixo-motor capaz de tomar as decisões que a cada momento se impõem, ou criar as condições para que as mesmas sejam tomadas, no âmbito do trajecto ambicioso de integração traçado.
3. AS RELAÇÕES EM EIXO FRANCO-ALEMÃS
De 1870 (ano em que o fim da Guerra Franco-Prussiana permitiria a unificação da Alemanha, trazendo, à hegemónica França, um rival no espaço continental europeu) a 1945, as relações em eixo franco-alemãs haviam sido tensas, assentando numa base de rivalidades mútuas, essencialmente em torno da questão siderúrgica e da pujança económica do Ruhr, ligado à Alsácia-Lorena e ao Sarre.
A partir de 1945, o problema siderúrgico do Sarre e do Ruhr afirmou-se como o principal ponto de discórdia entre os Dois. Porém, a necessidade de relacionarem-se pacificamente levou-os a estabelecer relações em eixo assentes no medo e na desconfiança.
Na verdade, embora o sonho da unidade europeia tenha raízes seculares, foi no período entre as duas guerras mundiais que a ideia unificadora mais frutificou, encontrando, nos condicionalismos pós-Segunda Guerra Mundial, as condições ideais para iniciar-se. Ainda que efectivamente determinante tenha sido o pragmatismo da necessidade política de pacificar o Velho Continente, meta que surgia, aos olhos de todos, como algo alcançável apenas através do enquadramento das relações em eixo franco-alemãs em estruturas supranacionais que controlassem a produção franco-alemã do carvão e do aço, de modo a tornar qualquer esforço de guerra, não só impensável, como materialmente impossível e garantir a pacificação do relacionamento mútuo em torno da exploração siderúrgica e carbonífera do Ruhr e do Sarre, controlando, simultaneamente, a expansão económica dos dois rivais do Velho Continente, responsáveis pelas tensões e guerras que, desde o século XIX vinham opondo a França e primeiro a Prússia, depois a Alemanha.
A celebração do Tratado de Paris, em 1951, criando a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), marcou, neste sentido, o início da integração franco-alemã solucionando as questões em torno do Sarre e do Ruhr.
As relações em eixo franco-alemãs, evoluindo no sentido da cooperação, permitiram, assim, desbloquear o impasse franco-alemão, pondo em movimento uma engrenagem não bi, mas multilateral que, pelo jogo dos fenómenos económicos e políticos a que daria lugar, acabaria por ultrapassar o quadro apertado de uma organização sectorial, abrindo caminho à criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica (EURATOM) e, muito especialmente, da Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1957, pela assinatura dos Tratados de Roma.
É verdade que, na base do impulso franco-teutónico, a integração europeia teve motivações várias, conjugadas na busca do equilíbrio (procurando evitar o aumento de poder de uma potência que então se tornaria dominante) e na meta do comprometimento da potência dominante em estruturas abrangentes, de que a integração da Alemanha no projecto Schuman constitui exemplo paradigmático. A integração europeia gerou-se, também, em torno da constância dos interesses nacionais dos Estados europeus que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, passaram a vislumbrar a integração europeia como meio para se obter a pacificação do continente. Os motivos para a adesão dos Estados ao Projecto Europa convergem, ainda, na obtenção de um compromisso com valores comuns e princípios europeus – como a paz, os Direitos Humanos, a economia de mercado, os direitos sociais e a superação das rivalidades multisseculares – que jogam em simultâneo com os interesses particulares de cada Estado, desde os económicos, aos princípios próprios de cada um e às relações de vizinhança, bem como o efeito magnético de atracção que o sucesso das Comunidades acabaria por gerar entre os restantes Estados europeus. Simultaneamente, o contexto pós-Segunda Guerra Mundial teve um papel altamente integrador, em função da reacção europeia à perda de poder com a ascensão das superpotências na hierarquia internacional das potências.
O Projecto Europa nascia, assim, associado à ideia de funcionar como contrapeso ao expansionismo soviético, cuja ameaça se tornava sucessivamente mais intensa, colocando a Europa na linha da frente de um eventual assalto soviético. Nascia, também, associado à ideia de contrapor-se ao crescente peso económico norte-americano, de modo a permitir à Europa recuperar a posição relativa que, ante as restantes potências, havia até então ocupado no xadrez estratégico internacional. A integração europeia pretendia, deste modo, constituir uma terceira via, uma terceira força face aos expansionismos soviético e norte-americano, ao mesmo tempo que os nacionalismos europeus, obsoletos desde 1945, predispuseram os líderes políticos a cogitar formas transnacionais de organização. Estas foram, deste modo, favorecidas pela vontade política de determinados líderes, grandes estadistas europeus sem cuja acção política jamais poderia ter existido a convergência decidida de nações hostis, sobretudo da França e da Alemanha, que conduzisse à integração.
De modo paralelo, actuaram sempre iniciativas europeias privadas, fundamentais para sustentar o projecto europeu posto em movimento, as quais se colocaram em posição de vanguarda, funcionando como poderoso meio de pressão política. Igualmente determinante para concretizar o processo europeu de integração foi a consideração, pela Alemanha, de que a sua participação em tal projecto permitir-lhe-ia resolver o problema da divisão do país, o que fez com que a integração europeia, desejada pela França como forma de enquadrar a Alemanha – e, numa fase inicial, o rearmamento alemão –, fosse também desejada pela Alemanha, que assim poderia, também, integrar-se nas estruturas da sociedade internacional ocidental, para então alcançar a independência e soberania temporariamente perdidas[10].
Assente nestas linhas de motivação, a União Europeia organizou-se no sentido do modelo da interdependência mediante integração, na base das relações em eixo franco-alemãs, mas incluindo também outros Estados que, marginais ao eixo, têm igualmente uma função importante a desempenhar em prol da integração europeia. Desde logo, funcionam como contrapeso à força centrípeta desempenhada pelas relações em eixo franco-alemãs, constituindo, não raras vezes, minorias de bloqueio que tornam o processo comunitário de decisão verdadeiramente comunitário, garantindo que a vontade da União Europeia, senão resultado da vontade consensual de todos os Estados-membros, resulte, pelo menos, de uma negociação que se torna indispensável.
O peso dos pequenos Estados-membros surge, neste contexto, particularmente importante, por evitar a dominação da União Europeia por um directório liderado pelo eixo-motor franco-alemão, papel visivelmente desempenhado pelo Reino Unido. Potência média, o Reino Unido rapidamente concluiu que excluir-se do projecto que pretendera destroçar inicialmente não lhe traria senão desvantagens económicas e, após ultrapassada a firme oposição de De Gaulle, que a compreendia como a entrada subreptícia dos Estados Unidos nos esforços europeus de cooperação, os Britânicos alcançaram a aceitação da adesão, concretizada em 1973. Desde então, e até hoje, o Reino Unido tem vindo a desempenhar, na União Europeia, a função de chefe de fila dos cepticismos que barram a evolução da integração europeia, ao mesmo tempo que criam reflexões sobre a essência mesma da União Europeia, assim contribuindo para fortalecê-la.
Aproveitando, neste contexto, o caminho aberto pela criação da CECA, da CEE e da EURATOM, ao mesmo tempo que se frustravam as tentativas de integração política a Seis, a França e a Alemanha decidiram encetá-la a dois, estabelecendo, definitivamente, o entendimento bilateral concertado com a assinatura do Tratado do Eliseu (Janeiro de 1963).
Apesar dos problemas que envolveram a ratificação deste pela Alemanha e do fraco alcance que se lhe pode atribuir como criador de estruturas concretas de acção concertada entre a França e a Alemanha, a verdade é que o Tratado do Eliseu tem uma importância determinante na consolidação, entre os dois Estados, das relações em eixo capazes de originar a integração regional, já que foi a partir daí que a almejada pacificação entre os Dois Grandes rivais continentais da Europa efectivamente ganhou contornos de realidade insofismável, concretizando a substituição das rivalidades em que assentavam as relações em eixo por um comportamento amplamente cooperativo.
Criadas as Comunidades em função do papel líder desempenhado pela França e pela Alemanha no seio da Europa Ocidental, estes Estados assumem-se como o eixo central de toda a União Europeia, determinando um elevado grau de coesão à região e, desta forma, ao projecto integracionista então iniciado, posteriormente aprofundado, paralelamente aos vários alargamentos, estimulado pela acção propulsora do entendimento dos líderes alemães e franceses. Monnet-Schuman, De Gasperi-Adenauer, Spaak-Monnet assumiram-se, desde logo, como parcerias importantes para o esforço de pacificação do Velho Continente, prelúdio das parcerias verdadeiramente franco-alemãs que a História não se cansaria de repetir. Adenauer-Schuman, Adenauer-De Gaulle, Schmidt-D`Estaign, Mitterrand-Kohl seriam parcerias determinantes para a construção da Europa Unida que hoje temos, ainda que o panorama tenha também sido manchado por entendimentos bilaterais não tão profícuos, como o que uniu Schröder e Chirac, ou como o que desuniu Ludwig Erhard e De Gaulle, estando por caracterizar o que hoje une, até ver, Chirac e Angela Merckel. A partir de determinado momento, todavia, a velocidade de evolução é mais lenta, mas existe, comprovando, no fundo, a relevância das referidas parcerias, os casais vinte das relações franco-alemãs.
Na verdade, tem sido o casal franco-alemão a impulsionar a força integradora das Comunidades, hoje União Europeia. De facto, na Europa, o impulso federalista, desencadeado pelo Congresso da Haia de 1948, teve continuação com a criação do Conselho da Europa no ano seguinte, com a Declaração Schuman de 1950, a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, no ano seguinte, com a criação da Comunidade Económica Europeia e, simultaneamente, a Comunidade Europeia da Energia Atómica, em 1957, e com a assinatura do Tratado do Eliseu, em 1963, como início de uma caminhada que, ante avanços e recuos, conduziria a décadas de construção europeia, com o Acto Único Europeu, o Tratado de Maastricht e a transformação das Comunidades em União Europeia, integrando a Política Externa e de Segurança Comum e a Cooperação no Domínio da Justiça e dos Assuntos Internos, o Tratado de Amesterdão, o Tratado de Nice, o Tratado Constitucional, os vários alargamentos, sobretudo o de Maio de 2004, nas quais sempre ressaltaria o papel de liderança do eixo franco-germânico, criando laços e interdependências numa rede complexa e multifuncional que, se não pacificou essas relações, ao menos enquadrou-as politicamente, por forma a resolver, diplomaticamente, os conflitos.
Simultaneamente, tem sido o casal franco-alemão a permitir ultrapassar as dificuldades que à integração europeia se têm, desde o início, deparado. O fracasso da Comunidade Europeia de Defesa e da Comunidade Política, do Plano Fouchet e da integração política; a crise da chaise vide; o eurocepticismo dos anos setenta; as dificuldades de ratificação do Tratado de Maastricht e, hoje, do Tratado Constitucional; os desentendimentos surgidos nas revisões realizadas, aos Tratados Comunitários, em Amesterdão e Nice, não só entre todos os Estados-membros, como particularmente entre a França e a Alemanha relativamente à questão do emprego e à aprovação do Pacto de Estabilidade; as dificuldades que envolveram todo o processo de entrada na terceira fase da União Económica e Monetária, de cumprimento dos critérios de convergência e de entrada em vigor da Moeda Única afirmaram-se como dificuldades que o motor franco-alemão logrou solucionar e ultrapassar, afirmando-se, nas décadas de construção europeia que marcam o percurso europeu até aos dias de hoje, como verdadeira locomotiva da União Europeia, cuja condução e consolidação se lhe fica a dever. Até pela consideração de que a Alemanha precisava da França para realizar a União Política, que Kohl considerava como imprescindível, enquanto Paris necessitava da Alemanha para construir a União Económica, que Miterrand desejava acima de tudo. Para a França, os seus interesses estariam melhor acautelados se a força económica da Alemanha estivesse integrada numa União Económica e Monetária e enquadrada numa Política Externa e de Segurança Comum que limitasse a capacidade de actuação autónoma da Alemanha e a conquistasse para o reforço organizacional e tecnológico dos meios militares da União Europeia, de modo a alcançar-se maior autonomia de decisão face aos Estados Unidos, numa complementaridade de interesses entre a França (onde a força económica era muito inferior às ambições políticas) e a Alemanha (onde a pujança económica era muito superior ao peso político) determinante para consolidar a integração regional europeia centrada sobre as relações em eixo Paris-Bona.
As dinâmicas, hoje, são distintas. Todavia, o papel de eixo-motor mantém-se para as relações em eixo franco-alemãs. Efectivamente, a União Europeia depara-se, hoje, não apenas com a questão do alargamento desmesurado aos Estados da Europa Central e Oriental, bem como à Turquia, sucessivamente adiado, ainda que as negociações para uma futura adesão se tenham finalmente iniciado a 3 de Outubro de 2005, como com a problemática que tem envolvido a ratificação, pelos Estados-membros, do Tratado Constitucional Europeu, como ainda com o potencial que a Alemanha em seu seio representa. Sendo o Estado mais rico, mais forte e mais populoso de todos os Estados-membros da União, a Alemanha, após ter recuperado o papel político que durante anos lhe estivera vedado, na sequência da desagregação do Império Soviético, assumiu um lugar central no seio da União Europeia, que a localização geográfica no coração da Europa vem reforçar.
Para que o eixo franco-alemão continue a funcionar como motor central da integração europeia e como cerne das relações franco-alemãs pacificadas, é necessário, por um lado, que a Alemanha esteja disposta a sacrificar os atributos de grande potência, que a União Europeia seja capaz de conviver com uma Alemanha assim fortificada, combinando a fraqueza e a divisão que hoje a afectam com o poder reunificado que cresce em seu seio e, ainda, que, reconhecendo a grande influência que a Alemanha tem junto dos Estados-membros e junto dos Estados da Europa Central e Oriental, fruto da sua tradicional política externa, a União Europeia lhe permita estar integrada num processo regional de integração que funcione como unidade estratégica, dotada de uma verdadeira Política Externa e de Segurança Comum. Tal permitirá à Alemanha exercer os atributos de grande potência integrada na União Europeia e irreversivelmente ligada à França, em simbiose mútua, no seio da qual a Alemanha permanecerá pacificamente e a União Europeia fortalecer-se-á, conjugando os binómios alargamento-aprofundamento político, de modo a reforçar a confiança em si própria e, a partir daqui, enquadrar os dilemas que a envolvem na actualidade. Se, além disto, a União conseguir formular uma estrutura de defesa própria, o modelo franco-alemão de cooperação militar existente será, certamente, o eixo central dessa nova força, o que coloca, uma vez mais, as relações em eixo franco-alemãs no cerne da condução e consolidação do processo europeu de integração.
CONCLUSÃO
A integração regional é um fenómeno multidimensional, que pode decompor-se em várias ordens de apreciação, sendo, porém, o nível essencial, que lhe está na base, e sem cuja existência seria difícil, sequer, um processo integracionista ter origem, o das relações em eixo, o substrato sobre o qual se gera, alarga, aprofunda e ganha consistência o processo regional de integração.
Os poderes hegemónicos têm, com efeito, a capacidade de fornecer a estabilidade que aumenta a segurança e o bem-estar dos Estados de menores dimensões, contribuindo, desta forma, para o comportamento cooperativo, porquanto fornecem a base para a realização de vantagens mútuas sob a forma de mercados em expansão ou de protecção militar.
É verdade que, para superar e contornar obstáculos é necessária uma predisposição para a negociação lenta e paciente o que, para a vivência europeia em geral, constitui já um aprendizado adquirido; aquele do ritmo lento e profundo da história institucional dos grandes constructos multiculturais e multissociais, assentes nos substantivos que dão continuidade e sustentação às linhas de longa duração da construção europeia: a persistência, a perseverança, a paciência, a prudência e a parceria[11], conjugados com a acção sempre visível das relações em eixo franco-alemãs, sendo certo que o modelo das relações em eixo pode ampliar-se à esfera mundial se, como novo conceito paradigmático, contribuir para a configuração de um mundo multipolar, porém organizado em estruturas hegemónicas que estabelecem, como objectivo de acção, a manutenção das posições dominantes que conduz à perpetuação das assimetrias entre os Estados.
De facto, o conceito de relações em eixo pode qualificar o tipo de relações bilaterais que esses países estabelecem entre si. Embora não pretendam originar processos integracionistas reúnem, nas suas relações mútuas, os elementos constitutivos do conceito de relações em eixo. Assim surgem como relações especiais estabelecidas entre potências que, embora nem sempre façam entre si fronteiras vivas, desenvolvem profícua complementaridade económica, articulando as ligações entre os núcleos dinâmicos dos eixos sobre os quais assentam e beneficiam da aceitação popular que lhes reforça a coerência interna, ainda que naturalmente influenciados por Estados terceiros, pelas forças de pressão e pelas forças profundas. Originadas por rivalidades, sobretudo, mas não só, relativas à hegemonia sobre as regiões que disputam, estas potências unem-se em eixo em função dessas rivalidades, as quais determinam a necessidade daquelas se relacionarem, num movimento pendular de hegemonia-dominação, vislumbrando, depois, no comportamento cooperativo, a melhor forma de, entendendo-se, proporcionar ganhos conjuntos de modo a eliminar os custos da não-relação. A vontade de potência dos respectivos líderes, assim como a elaboração política e as percepções de interesse convergem, pois, num mesmo sentido, formatando as relações em eixo que acabam por ter forte impacto sobre a respectiva região. Deste modo, a expansão das relações em eixo poderá ser amplamente vantajosa na Europa, funcionando como elemento para robustecer outros eixos que contribuam para a coesão da União Europeia a vinte e cinco, operando igualmente vantagens comparativas e, por conseguinte, ampliando as capacidades de poder. Na sua essência, as relações em eixo também podem, na União Europeia hoje alargada e suspensa nas contradições impostas pelo engano constitucional, funcionar como proposta de saída do impasse, promovendo a compreensão da necessidade do alargamento como garantia da paz continental, ainda que se saiba, de antemão, quão custoso, financeiramente, será o alargamento – o que desde Maio de 2004 actua já na negociação das Perspectivas Financeiras para o período de 2007 a 2013 e aquele que, certamente, aos limites de Vladivostok chegará um dia.
A comunidade epistémica de relações internacionais não é, todavia, unânime na nossa consideração das relações em eixo ranco-alemãs como elemento essencial para a génese, condução e consolidação do processo europeu de integração regional.
Duas opiniões formam-se em torno da compreensão do papel que jogam as convergências e divergências das relações em eixo franco-alemãs no seio doa União Europeia.
A corrente adepta do argumento que elaborámos, respaldada por Robert Picht, Hendrik Uterwedde, Wolfgang Wessels, Klaus Grewlich, Jacques Morizet e Pierre Gerbet e a corrente oposta, respaldada por Christian Lequesne, Helen Wallace, Françoise de la Serre e Axel Herbst.
Esta corrente considera um mito a convergência franco-alemã, menosprezando o nível de harmonização entre si existente e considerando os mecanismos de concertação franco-alemães demasiado complexos, ao mesmo tempo que salienta as crises de confiança que vão surgindo entre os casais.
A visão pragmática, que intermedia as duas posições, apela à complementação entre a integração e a geometria variável e, reconhecendo que, apesar de tudo, o progresso da União Europeia é inviável quando existe um desacordo franco-alemão, Christian de Boissieu e Hans-Eckart Scharrer ressaltam a existência de outros eixos no seio da União Europeia, como os que ligam Berlim e Londres, Paris e Londres e, cada vez mais, Roma e Madrid, funcionando o casal franco-alemão, não raras vezes, como minoria de bloqueio no processo de formação da vontade comunitária.
A realidade da integração europeia, todavia, conduz-nos à orientação que avalia as relações em eixo franco-alemãs como motor da integração regional europeia, podendo a generalização ser feita, a partir de análise semelhante feita ao papel das relações argentino-brasileiras, também em eixo, no seio do Cone Sul, da América do Sul de modo mais abrangente e da América Latina de modo mais abrangente ainda, na conformação do MERCOSUL.
De facto, mesmo que existam divergências entre os Estados unidos por relações em eixo, mesmo que muitas vezes o acordo seja difícil de alcançar entre si, mesmo que a cooperação bilateral sem sempre seja tão profícua quanto desejável, a verdade é que os casais franco-alemães têm sabido ultrapassar as divergências e as dificuldades.
Estas, em lugar de enfraquecer as relações em eixo, constituem testes à capacidade e vontade políticas dos Estados assim unidos em fortalecer tais relações mútuas especiais que, por conseguinte, assentes sobre um eixo, funcionam como base do processo europeu de integração, surgindo as relações em eixo como novo conceito paradigmático da Teoria das Relações Internacionais.
[1] Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Docente no I.S.C.S.P.
[2] Cfr. SMOUTS, Marie-Claude; “As Novas Relações Internacionais : Práticas e Teorias”, Editora UnB, tradução de Georgete M.Rodrigues, 1ª edição brasileira, Brasília DF, 2004, pp.146, citando COX, Robert ; « The New Realism. Perspectives on Multilateralism and World Order”, New York, United Nations University Press, 1997.
[3] Cfr. DUROSELLE, Jean-Baptiste; “Todo Império Perecerá – Teoria das Relações Internacionais”, Editora UnB, Universidade de Brasília, Imprensa Oficial do Estado, São Paulo 2000, tradução de Anne Lize Spaltemberg de Siqueira Magalhães, 1a. Edição de 1992 por Armand Colin Publisher; e Cfr. RENOUVIN, Pierre (diréction); “Histoire des Relations Internationales », Éditions Hachette, 1ere Édition, Paris, 1958, 8 tomos ;
[4] Ferramenta teórica útil para compreender-se a integração regional, mas apenas do ponto de vista económico, já que esta visão reduz a integração à integração económica.
[5] Cfr. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; “Power and Interdependence”, 3rd edition, Library of Congress Cataloging in-Publication Data, Longman Editions, New York, 2001.
[6] Cfr. KRASNER, Stephen; “International Regimes”, edited by Peter Katzenstein, Cornell University Press, 8th Edition, Ithaca, USA, 1995. Sobre a teoria dos regimes vide também as colaborações de Friedrich Kratochwil, John Gerard Ruggie, Duncan Snidal, Oran Young, Peter Haas, Robert Cox e Ernest Haas em KRATOCHWIL, Friedrich e MANSFIELD, Edward D.; “Iternational Organization – a Reader”,386 páginas, Longman Edition, 1st Edition, New York, 1994.
[7] Cfr. ARON, Raymond; “Paz e Guerra entre as Nações”, Colecção Clássicos do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Imprensa Oficial do Estado, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI, tradução de Sérgio Bath, prefácio de António Paim, 1ª edição brasileira, Editora da UnB, Brasília DF, 2002, pp. 99. Tendo desde logo em conta a distinção, feita pelo autor, entre poder e potência, contemplada na tradução brasileira utilizada, de forma bastante confusa, numa mistura incorrecta dos conceitos de poder, potência e forç , mas muito clara na versão francesa original. A potência surge, assim, como um poder em potencial, que pode ser utilizado, mas que o não é. Assim como die Macht representa le pouvoir, o poder, enquanto die Herrschaft significa la puissance, a potência. La puissance, die Herrschaft, a potência só se tranforma em pouvoir, die Macht, poder, quando se concretiza na prática, isto é, quando se aplica em circunstâncias e com objectivos determinados.
[8] Os países limítrofes, ante a união das duas maiores economias da região, não hesitaram em juntar-se de início ao projecto, procurando participar da pacificação do continente e proteger-se, quer da crescente ameaça soviética, quer do crescente poder económico norte-americano.
[9] Cfr. RUGGIE, John Gerard; “Multilateralism: The Anatomy of an Institution”, in RUGGIE, John Gerard; “Multilateralism Matters: The Theory and Praxis of an Institutional Form”, Columbia University Press, New York, 1993, pp.11, citado por DOUGHERTY, James E. E PEALTZGRAFF, Robert L. Jr.; “Relações Internacionais – As Teorias em Confronto”, tradução de Marcos Farias Ferreira, Mónica Sofia Ferro, Maria João Ferreira, coordenação científica de Victor Marques dos Santos e Heitor Barras Romana, 1ª edição portuguesa, Lisboa, Outubro de 2003, pp.643-644.
[10] Cfr. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende; “Relações Internacionais – Cultura e Poder”, Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), UnB, Universidade de Brasília, com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), Brasília DF, 2002,pp.222-228 e PFETSCH, Frank; ; “A União Européia – História, Instituições, Processos”, Colecção Relações Internacionais, tradução de Estevão C.R.Martins, Editora UnB, 1ª Edição, Brasília DF, Outubro de 2002, pp.15-67.
[11]Cfr. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende; “A Construção da União Européia: Uma Questão de Princípios”, Julho de 2002, 12 páginas, exemplar não publicado gentilmente cedido pelo autor, pp.2.
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